24.ago

Mudanças nas regras do auxílio-alimentação e o risco de desenquadramento do PAT

No final de 2021, o presidente da República editou o Decreto 10.854/2021 com a finalidade de consolidar diversas normas trabalhistas infraconstitucionais sobre diversos temas, como o vale-alimentação, dentre outros.

No capítulo XVIII, o Decreto regulamentou as questões atinentes ao Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), estabelecendo que a parcela paga in natura pela pessoa jurídica beneficiária, no âmbito do PAT, ou disponibilizada na forma de instrumentos de pagamento (vales ou tickets), não tem natureza salarial, vedado apenas o seu pagamento em dinheiro.

A propósito, importante lembrar que, em 23 de fevereiro de 2022, o presidente da República aprovou o Parecer BBL 4/2022 da AGU, que vincula a Receita Federal e o Carf, no sentido de que auxílio-alimentação, na forma de tíquetes ou congêneres, já não integrava a base de cálculo da contribuição previdenciária, mesmo antes da reforma trabalhista de 2017, desde que não haja desvirtuamento nem possibilidade de compra de bens que não alimentícios.

Com relação ao valor do benefício fiscal aplicável ao IRPJ devido pelo empregador, nos termos do PAT, conhecida como “dedução em dobro” de até 4% do imposto devido, o referido Decreto alterou a redação do artigo 645 do Regulamento do Imposto de Renda – RIR/2018, com a finalidade de reduzir a renúncia fiscal do governo federal, no seguinte sentido:

  • Para os casos de concessão de vales/tickets, apenas as despesas relativas aos empregados com salário de até cinco salários mínimos são dedutíveis;
  • Para os casos de serviço próprio de refeições ou de distribuição de alimentos por meio de entidades fornecedoras de alimentação coletiva, a dedutibilidade poderá englobar as despesas de todos os trabalhadores;
  • A dedução da despesa passa a ser limitada ao valor de um salário mínimo por empregado;

Com base na jurisprudência, especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a publicação deste Decreto 10.854/2021 pode levar as empresas a questionarem judicialmente tanto (i) o desrespeito ao princípio da legalidade (a Lei 6.321/1976, que criou o benefício fiscal, não prevê limitações, as quais também não poderiam ser feitas por decreto); quanto (ii) o desrespeito ao princípio da anterioridade, pois a mudança passou a produzir efeitos a partir de dezembro de 2021 e não apenas no ano seguinte, já havendo diversos precedentes judiciais nesse sentido[1].

Além destas questões especificamente fiscais, o referido decreto também determinou:

  • Fim da Taxa Negativa: não é possível obter benefícios (deságio/rebate/cashback) com as fornecedoras de alimentação ou facilitadoras de aquisição de refeições.
  • Modalidade de pagamento: pré-pago – não é possível renegociar prazos para pagamento.

Não obstante a discussão jurisprudencial acima versar especificamente sobre a questão do benefício fiscal de dedutibilidade em dobro da despesa do PAT da base de cálculo do IRPJ, ainda seria possível defender a interpretação por analogia da consolidada jurisprudência do STJ à proibição do rebate, criada pelo artigo 175 do decreto, sob este mesmo fundamento de desrespeito do princípio constitucional da legalidade, uma vez que qualquer restrição aplicável ao PAT somente poderia ser criada por lei e não por um decreto que possui a competência meramente regulamentar, o que não se confundiria com a possibilidade de criar novas restrições.

Justamente em virtude da potencial ilegalidade do Decreto 10.854/2021, o presidente da República editou, em 25 de março de 2022, a MP 1108/2022, que trouxe para o texto legal os objetivos apresentados no referido decreto.

Neste sentido, importante destacar os itens 16 a 20 da exposição de motivos da MP 1108/2022 mencionam expressamente que o objetivo da regra seria o de coibir novo benefício financeiro para a empresa empregadora em detrimento de seus empregados, que arcariam com o custo ao final da cadeia, ressalvando apenas a possibilidade de oferecimento de verbas e benefícios vinculados à promoção de saúde e segurança alimentar. A MP restou convertida na Lei 14.442/2022.

A despeito das supostas boas intenções do legislador, as limitações impostas aos empregadores e fornecedores de vale-alimentação violariam o que dispõe a Constituição Federal acerca do livre exercício da atividade econômica, protegido pelo seu art. 170.

Do ponto de vista jurisprudencial, na ADI 5472, julgada em 2018, de relatoria do ministro Edson Fachin, o STF entendeu que a determinação em Lei Ordinária pode representar ato contra a livre concorrência, razão pela qual seria inconstitucional.

E o ponto seria o de aplicar, por analogia, esta interpretação ao caso concreto, pois ao impedir que sejam negociados deságios ou descontos ou rebate na contratação dos fornecedores de vale-alimentação, promover-se-ia intervenção injustificada quanto à livre negociação de preços entre as empresas contratantes.

De forma alternativa a esta potencial discussão judicial e como forma de manter a atratividade e competitividade de seus produtos, algumas emissoras de vale-alimentação têm buscado oferecer contrapartidas vinculadas à promoção de saúde e segurança alimentar, nos termos da autorização legal por exceção acerca da possibilidade de repasse de verbas e benefícios desde que destinados a essa finalidade. No âmbito dessas ofertas, algumas emissoras defendem a possibilidade de fazer o reembolso para a empregadora de parte de sua despesa com plano de saúde, dentro de um plano de promoção de saúde, já que este reembolso seria caracterizado como medida de promoção de saúde.

O argumento de defesa desta interpretação seria o de que a lei e o decreto seriam claros ao proibir deságio, desconto, prazos que descaracterizem a natureza pré-paga e outros repasses de verbas ou ofertas de benefícios que não vinculados diretamente à promoção de saúde e segurança alimentar do empregado, mas não teriam regulamentado a extensão do conceito “saúde e segurança alimentar” nem vedado a prática de reembolsos de benefícios já existentes na empregadora.

De fato, em live realizada no último dia 8 de fevereiro, no âmbito da Ação Especial Setorial Junto às Facilitadoras do PAT[2], os auditores do trabalho manifestaram desconhecimento acerca de como a exceção à vedação ao rebate será tratada e sobre a abrangência da expressão “saúde e segurança alimentar” introduzida pela nova redação do art. 1º, § 4º, inciso III da Lei 6.321/76.

Além disso, poder-se-ia sustentar que o ministro do Trabalho e Previdência ainda não regulamentou a Lei 14.442/2022. Mesmo assim, o art. 4º, § 1º da Lei só permitiria que a regulamentação verse sobre “critérios de cálculo e os parâmetros de gradação da multa”, mas não permitiria a criação de novos conceitos e vedações que não expressamente presentes na lei.

Isso porque, como acima mencionado, a jurisprudência do STJ é consolidada no sentido de que decretos e portarias que regulamentam o PAT não podem criar novos conceitos e vedações que não expressamente presentes na lei.

Por outro lado, também vislumbramos a possibilidade de a fiscalização da Secretaria do Trabalho ou da Receita Federal entender que esta prática de reembolsos violaria a lei, pois (i) não seria possível separar os conceitos de saúde e segurança alimentar, que estariam conexos; (ii) mesmo eventual benefício relacionado exclusivamente à promoção de segurança alimentar ainda suscitaria incerteza quanto à possibilidade de sua caracterização de rebate ou similar; (iii) a exposição de motivos da Medida Provisória e a própria redação da lei demonstram que o objetivo é o de impedir que as empresas emissoras possam oferecer qualquer retorno financeiro à empregadoras contratantes, pois além do risco de desvirtuamento, acarretaria em práticas anticompetitivas e com impacto para os estabelecimentos comerciais de alimentos e refeições; bem como que (iv) qualquer tipo de benefício fiscal, como o do PAT, deve ser interpretado restritivamente, nos termos do art. 111 do Código Tributário Nacional (CTN).

Caso a fiscalização entenda que qualquer das alternativas acima representaria descumprimento da Lei 14.442/2022 e das regras do PAT, as empresas estariam sujeita aos riscos de (i) cancelamento da inscrição da empresa empregadora no PAT ou do registro da emissora do benefício no PAT, desde a data da primeira irregularidade passível de cancelamento; (ii) perda do incentivo fiscal da dedutibilidade em dobro (da base de cálculo do IRPJ) das despesas do PAT; (iii) aplicação de multa no valor de R$ 5.000 a R$ 50 mil, a qual será aplicada em dobro em caso de reincidência ou de embaraço à fiscalização; bem como (iv) em um pior cenário, a Receita Federal poderia aplicar outras penalidades se entender que teria havido o desvirtuamento do benefício e o descumprimento de demais requisitos legais.

Por fim, no projeto de conversão em lei da MP 1173/2023 foi inserido um dispositivo para excluir essa possibilidade de recebimento de verbas e benefícios pela empresa empregadora, mantendo uma limitação absoluta a contrapartidas comerciais para o oferecimento do auxílio-alimentação por meio de tickets e congêneres.

Portanto, os contribuintes devem se atentar para as potenciais interpretações divergentes a serem possivelmente defendidas pelas autoridades fiscalizadoras e pelas empresas, bem como por futuras mudanças ao texto legal, o que prejudica a necessária existência de segurança jurídica para o fomento da atividade empresarial e da economia do país.

 

Fonte: JOTA