24.out

A internet e o estupro virtual: um impasse jurídico

As empresas de dados americanas Hootsuite e We Are Social[1] realizaram um estudo estatístico em relação aos internautas que fazem uso da rede mundial de computares (internet). Os dados, de fato, são surpreendentes, uma vez que o ponto de partida é a população mundial, atualmente, estimada em 7,6 bilhões de pessoas radicadas no globo.

Desse total, 4 bilhões (53%) têm acesso à internet; 3,1 bilhões (42%) são usuários ativos de redes sociais; 2,9 bilhões (39%) usam as redes sociais pelos seus dispositivos móveis, especialmente os smartphones. No Brasil, 66% dos brasileiros têm acesso à internet, isto é, 127 milhões de usuários.

Tudo isso, concretamente, representa a mudança inequívoca do comportamento social, sobremaneira no uso contumaz das redes sociais (Facebook, Whatsapp e Instagram) para os mais variados fins, seja de cunho profissional ou até mesmo para o lazer. Nessa nova era, o desafio é se adaptar.

Noutro vértice, diante de todo o crescimento exponencial das novas tecnologias, o Legislativo brasileiro a fim regulamentar esse novo cenário, mediante promulgação da Lei nº 12.965/2014[2], instituiu o Marco Civil da Internet. No mesmo contexto, a Lei de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), materializada por meio da Lei nº 13.709/2018[3]. Tal conjuntara, reflete o ritmo acelerado da nova sociedade em rede.

Nesta toada, o Estado na sua concepção, em especial na sua função Legislativa, a rigor, não acompanha o ritmo veloz da sociedade. Logo, em um dado momento, quando instado o Estado-Juiz, a fim de que exerça à prestação jurisdicional, havendo ausência legislativa, não poderá o Julgador se utilizar de interpretações semânticas alienígenas, sob pena de incorrer em graves prejuízos ao Estado de Direito.

Além do mais, todo o cuidado é pouco, de modo que uma decisão fora dos quadrantes legais, em última análise, poderá representar um caminho funesto e sinuoso. Em outras palavras,[4] a “norma jurídica tornar-se-á boa ou má, produtiva ou prejudicial, elogiável ou iníqua, não tanto pelo seu conteúdo específico, porém antes e acima de tudo pela própria interpretação que o magistrado lhe imprimir”.

Atrelado a tudo isso – na senda da hermenêutica – em inédita interpretação da norma jurídica (art. 217-A, do Código Penal), e, por consequência disso, firmando precedente, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos RHC 70.976/MS (Dje 10/08/2016), de Relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, manifestou-se acerca do estupro “virtual”. Vejamos:

DIREITO PENAL. DESNECESSIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA DEFLAGRAÇÃO DEAÇÃO PENAL     POR     CRIME     DE     ESTUPRO     DE VULNERÁVEL. A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. No caso, cumpre ainda ressaltar que o delito imputado encontra-se em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena. (RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016, DJe 10/8/2016) (Informativo nº 587).

Convergindo na mesma seara, em recente decisão (29/01/2020), a Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, nos autos do processo nº 70.080.331.317, manteve condenação de um estudante de medicina por estupro “virtual”. Cita-se:

APELAÇÃO-CRIME. ASSEDIAR, POR QUALQUER MEIO DE COMUNICAÇÃO, CRIANÇA, COM O FIM DE COM ELA PRATICAR ATO LIBIDINOSO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ARMAZENAR, POR QUALQUER MEIO, FOTOGRAFIA, VÍDEO OU OUTRA FORMA DE REGISTRO QUE CONTENHA CENA DE SEXO EXPLÍCITO OU PORNOGRÁFICA ENVOLVENDO CRIANÇA OU ADOLESCENTE. CONCURSO MATERIAL […]. Grifei.

Com efeito, extrai-se o seguinte:

  1. De um lado tem-se o entendimento que a contemplação de caráter lascivo, mesmo que não haja contato físico entre a vítima e o autor dos fatos, há a configuração do crime de estupro de vulnerável, nos termos do artigo 217-A do Código Penal (entendimento do Superior Tribunal de Justiça);
  2. De outro, o assédio por qualquer meio de comunicação, com fins lascivos, ainda que ausente o autor dos fatos, afigura-se o delito de estupro de vulnerável, do artigo 217-A do Código Penal (entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul).

Dito isso, frente a tal contexto, cabe uma análise referente ao tipo penal do artigo 217-A, do Diploma Penal, in verbis: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. Pois bem, o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A), exige, peremptoriamente, participação ativa ou passiva da vítima ou com terceiro. Significa dizer que “na modalidade ter conjunção carnal, o delito se aperfeiçoa com a introdução total ou parcial do pênis na vagina. Na variante praticar outro ato libidinoso o crime se aperfeiçoa no momento em que se concretiza no corpo da vítima o ato libidinoso desejado pelo agente[5]”.

Nesse contexto, a via interpretativa latu sensu do tipo penal (art. 217-A), última parte, praticar outro ato libidinoso, traduz- se em iniquidades. Isso porque, o tom imprimido pelos julgados supracitados, redundam em analogia in malam partem, vedado pela Constituição da República de 1988 (art. 5º, XXXIX) e Código Penal (art. 1º), respectivamente, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

Art. 1º – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Não se pode olvidar, ainda, à luz dessa conjuntura, o princípio da legalidade, o qual é imperativo na tarefa de não trazer margem discricionária e teratológica da interpretação do tipo penal incriminador. Por assim ser, merece relevo, os ensinamentos de Claus Roxin[6]:”Uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação dos ius puniendi estatal, ao qual se possa recorrer. Ademais, contraria o princípio da divisão dos poderes, porque permite ao juiz realizar a interpretação que quiser, invaindo, dessa forma, a esfera do legislativo”.

Ressalta-se, por oportuno, que uma alternativa mais justa adequada seria uma analogia em favor do réu. Nesse caminho, o professor Israel Domingos Jorio[7], posiciona-se: “Embora o art. 215-A esteja previsto para não vulneráveis, sua ratio é o ajuste da punição segundo a menor relevância dos atos libidinosos e a ausência de violência ou grave ameaça. Por isso, seria viável, por uma analogia in bonam partem, usar esse tipo penal os casos de atos libidinosos menos relevantes, e cometidos sem violência ou grave ameaça, contra pessoas vulneráveis”.

Adotando essa posição, diante de análise acurada do caso concreto, o Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da Apelação nº 0005731-38.2017.8.26.0565, assentou entendimento, uma vez que desclassificou fato anteriormente capitulado como estupro de vulnerável (art. 217-A, do CP) para amoldá-lo à tipificação do artigo 215-A (importunação sexual) do Código Penal. Os fatos imputados ao réu consistiam em: (i) encoxar a menor; (ii) abraça-la por trás, esfregando por cima das roupas, sua região genital nas nádegas dela; (iii) passar a mão sobre os seios da menor e deitar-se sobre seu corpo.

Ainda, no julgado em questão, no que tange à desclassificação do delito capitulado no artigo 217-A (estupro de vulnerável) para o 215-A (importunação sexual), ambos do Código Penal, asseveraram os Julgadores, in verbis: “Mais consentânea à realidade fática e também mais proporcional em relação aos atos praticados”.

Noutro dizer, ante a lógica decorrência dos fatos narrados e concatenados, quando da análise do caso concreto, os parâmetros e peculiaridades devem ser, inarredavelmente, perscrutados pelo Julgador no que toca ao tipo incriminador. Isto, pois, se o artigo 217– A (estupro de vulnerável) -se regra tornar interpretativa para todo e qualquer tipo de caso, em que pese favorável todas circunstâncias do autor do fato (primariedade, bons antecedentes e etc.); não serão os vetores do artigo 59 do Código Penal que irão trazer proporcionalidade à pena aplicada, porquanto, a pena mínima estipulada no delito do artigo 217-A (estupro de vulnerável) é de 8 (oito) anos e a máxima de 15 (quinze) anos.

Por outro lado, à luz do juízo da razoabilidade concreta e da prova dos autos, em casos de ato libidinosos menos relevantes, a fim de que paire à proporcionalidade, o artigo 215-A (importunação sexual) deverá ser aplicado, de modo que sua pena mínima é de 1 (um) ano e a máxima de 5 (cinco).

Conseguintemente, o caso concreto deve ser sopesado pelo Julgador com toda destreza possível. Não se pode tratar um caso típico de estupro de vulnerável (art. 217- A, do CP) – com penetração anal e/ou vaginal – com a mesma pena com quem troca fotos e/ou se utiliza de contemplação de outrem com fito da lascívia. Haverá, em último caso, desproporção da eventual reprimenda aplicadacomo dos julgados supracitados do TJ/RS (autos nº 70.080.331.317) e STJ (RHC 70.976/MS).

A fim de dar cabo à discussão exegética, e frente às novas relações intersubjetivas por meio das redes sociais, exsurge, nesse momento, a necessidade de novo tipo penal com o intuito de abarcar esse novo fenômeno social herdado pela tecnologia da nova sociedade em rede.

Assim, diante de suas atribuições legais, caberá ao Poder Legislativo, disciplinar essa matéria para maior segurança jurídica da Sociedade Civil Organizada. Doravante, o nosso compromisso é trazer luzes à justiça para que cumpra seu papel com excelência, trata-se de um esforço coletivo de todos os atores do Judiciário (advogados, juízes e promotores).

Conseguintemente, não se olvida que há em trâmite o Projeto de Lei n. 1891/23[i], em trâmite na Câmara dos Deputados, de autoria da Deputada Renata Abreu (Pode-SP). A propositura trazida pelo PL, objetiva inserir no Código Penal, as mesmas penas aplicáveis aos crimes de estupro e estupro de vulnerável, a modalidade virtual – ou seja, o crime praticado à distância, por meios digitais, como sites e aplicativos de internet.

De todo o modo, o tema é sensível e requer amplo debate no âmbito do Poder Legislativo e setores da sociedade civil organizada.

Por fim, o dado está lançado – Alea iacta est – expressão utilizada por Júlio César em 49 a.c. momento que atravessou o Rubicão. Cumpramos o nosso papel e que a sorte nos acompanhe, aliás: “No início desse novo século está posto o desafio diante de todos nós: o de nos empenharmos nessa perene tarefa de ajustar o Direito à Justiça a fim de construirmos uma sociedade mais justa e fraterna para os nossos descendentes. Lembremo-nos que o nosso compromisso é com o Direito e a Justiça e não apenas com a lei, e que sem operadores competentes do Direito não passará de uma estrutura formal de justiça e de uma mera utopia[8]”.

[i] https://www.camara.leg.br/noticias/975075-projeto-de-lei-tipifica-e-pune-o-crime-de-estupro-virtual/

[1] https://www.peepi.com.br/blog/estatisticas-redes-sociais-2018/

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm

[4] https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista18/revista18_58.pdf apud Rosah Russomano – Lições de Direito Constitucional (1970, p. 302).

[5] Código Penal comentado / Cleber Masson. 5. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017, pág. 908.

[6] Bitencourt, Cezar Roberto – Tratado de direito penal: parte geral, 1- 18. ed. rev.,ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012 – pág. 49 apud Claus Roxin – Derecho Penal , pág. 169.

[7] Jorio, Israel Domingos – Crimes Sexuais – 2.ed.rev. ., ampl. e atual. – Salvador: Editora JusPodivm, 2019, pág. 191.

[8] Sergio Cavalieri Filho – Revista da EMERJ, v.5, n. 18, 2002, pág. 65 – https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista18/revista18_58.pdf.

 

Escrito por: Luís Octávio Outeiral Velho