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Duas maneiras de entender a importação por conta e ordem e suas implicações práticas

A importação por conta e ordem é uma figura jurídica criada em 2002 para dar legitimidade a uma realidade de mercado já antiga na época – as operações intermediadas por empresas trading – sem caracterizar interposição fraudulenta de terceiro.

Segundo as regulamentações da Receita Federal do Brasil, a importação por conta e ordem é uma modalidade de importação em que o importador promove, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadorias adquiridas por outra empresa, o adquirente, em razão de contrato previamente firmado, que pode compreender ainda a prestação de outros serviços, como a cotação de preços e a intermediação comercial.

Acontece que a efetiva formalização das operações de importação por conta e ordem é bem mais complexa do que isso. A microrregulamentação dessa modalidade de importação criou um verdadeiro Frankenstein composto por normas adaptadas de outras realidades – arcabouço normativo que ao mesmo tempo engessa a atividade das tradings e traz risco financeiro para as empresas e empresários, já que as controvérsias geradas em torno das questões acessórias à importação por conta e ordem são, pelo menos em matéria tributária, sempre saneadas da pior forma possível para a empresa importadora.

Como assim existem duas formas de entender a importação por conta e ordem?

Sim, a importação por conta e ordem pode ser vista de duas formas por quem vê de fora, cada uma com importantes implicações em matéria tributária. Existe uma corrente que defende que o importador é um mero intermediário, não tendo portanto qualquer relação de real interesse ou real, e que o adquirente é o real destinatário da mercadoria.

Uma corrente defende que, na importação por conta e ordem, o importador é um prestador de serviços puro e simples, e que o adquirente é o “real destinatário” da mercadoria. Outra corrente defende a existência de uma relação “heterogênea” de prestação de serviços, já que as exigências da legislação impõem o trânsito das mercadorias no estoque do importador, bem como o seu dever de lançar e pagar os tributos na qualidade de contribuinte (ou seja, sujeito passivo principal, praticante do “fato gerador”).

Mas qual a relevância dessa divergência de interpretações?

Essa dicotomia de leitura da importação por conta e ordem é das mais relevantes. Afinal, a adoção de um entendimento ou de outro altera, pelo menos na teoria, na Lógica, toda a cadeia de responsabilidades e obrigações acessórias da importação por conta e ordem.

Ora, se a coerência lógica é o elemento que valida um sistema de normas ou determinada interpretação jurídica, há de se concluir, ao menos em tese, que duas premissas opostas não podem levar à mesma conclusão.

Na prática, a divergência traz uma diversidade de problemas de ordem prática – dos quais darei diversos exemplos –, que dificultam e talvez em muitos casos inviabilizam a atividade de trading.

A falta de regulamentação específica e tratamento uniforme para a importação por conta e ordem agrava o problema. Não há um posicionamento coerente na RFB nem na PGFN; muito menos no Poder Judiciário.

Quais são esses problemas de ordem prática?

Os órgãos da Fazenda Pública (PGFN, RFB, Estados e Municípios) tem defendido sistematicamente que a natureza do contrato firmado entre importador e adquirente é de prestação de serviços pura e simples – e têm-no feito em casos específicos, apenas quando existe interesse em defender essa posição. Alguns exemplos:

  1. para exigir o pagamento do ISS pelo importador (afinal é prestador de serviços e recebe comissão para tanto);
  2. para impedir a repetição de indébito de tributos pagos a maior na importação (afinal o prestador de serviços não é o “real adquirente” da mercadoria);
  3. para exigir o pagamento (muitas vezes em duplicidade) do ICMS no Estado do destinatário da mercadoria (afinal o “real adquirente” da mercadoria é o adquirente);
  4. e outras hipóteses.

Acontece que essa posição não é nada conciliável com as disposições das IN/RFB n° 225/2002 e 247/2002 e da legislação ordinária que foi posteriormente editada para regulamentar a incidência dos tributos nas operações de importação por conta e ordem; e que a transformaram (muito mais) em uma modalidade “heterogênea” de prestação de serviços – uma colcha de retalhos.

Afinal, se o importador fosse um “simples intermediário”, não se poderia dele exigir:

  1. a escrituração completa das operações (as mercadorias transitam de maneira escritural no estoque do importador, mesmo que a empresa nunca “veja a cor” dos produtos), como se adquirente fosse;
  2. o lançamento e o recolhimento dos tributos devidos na importação na qualidade de contribuinte (ou seja, o sujeito passivo principal, que pratica o “fato gerador”, ou seja, que possui o interesse direto na operação), como se adquirente fosse;
  3. em especial, a cobrança do ICMS no Estado do importador – o que acontece em praticamente todos os Estados, a exemplo de Santa Catarina;

Essa posição tem consequências jurídicas absolutamente relevantes para os operadores de comércio exterior, porque divide importador e adquirente em “contribuinte de direito” e “contribuinte de fato”, conceitos relevantes em matéria de Direito Tributário.

Ora, se o importador é contribuinte dos tributos na importação, é dele o direito à repetição de indébito dos tributos quando pagos a maior; e se o importador é só um intermediário, ele não pode ser contribuinte.

Da mesma forma, se o importador é realmente o contribuinte do ICMS-Importação, o ICMS deve ser recolhido no Estado da sede do importador, sendo dele o direito à repetição de indébito, quando o tributo seja pago a maior.

Só que se o importador é só um intermediário, pelo contrário, ele não pode ser contribuinte, porque o real sujeito da relação jurídica é o adquirente, e o ICMS-Importação deve ser recolhido no Estado da sede do adquirente.

E qual seria uma solução viável para essa controvérsia?

Tenho visto ambas as posições sendo sustentadas pela Fazenda Pública nos Tribunais, de acordo com a conveniência, e as soluções adotadas pelos Tribunais, infelizmente, são as mais híbridas possíveis, o que reflete a má compreensão do tema pelas autoridades no assunto.

Mas o fato é que a premissa de que o importador é um simples intermediário implica ou, no mínimo, exige a invalidação de toda a legislação que estabelece a sujeição passiva do importador pelos tributos na importação, assim como a obrigação de escrituração fictícia das mercadorias. Apenas assim seria possível que se considerasse a importação por conta e ordem aquilo que ela realmente é: uma prestação de serviços como qualquer outra.

Por outro lado, a manutenção da legislação atualmente vigente torna completamente inviável (do ponto de vista da própria Lógica) nem essa nem outras soluções híbridas defendidas pela Fazenda Pública e adotadas por determinados Tribunais. O importador (por conta e ordem) não pode, por força da Lógica, ser ao mesmo tempo intermediário e comprador da mercadoria – ou é um ou é outro.

Inobstante, a IN/SRF n° 225/2002 diz que pode: transforma o importador (por conta e ordem) nessa figura jurídica quimérica que é, sendo ao mesmo tempo intermediário e comprador da mercadoria importada – que transita em seu estoque mediante emissão de notas fiscais de entrada e saída (embora não ingresse nem de fato [fisicamente] no estabelecimento). É ainda o contribuinte do II, Pis-Importação, Cofins-Importação, IPI-Importação, ICMS-Importação, devido pela importação da mercadoria, embora ela, novamente, nunca ingresse de fato no estabelecimento ou no estoque do importador.

É evidente portanto que o instituto da importação por conta e ordem carece de um tratamento sério na Administração Pública, que possa uniformizar a sua regulamentação – seja qual for – de acordo com as regras gerais de Direito Tributário, de maneira coerente. Tratar a importação por conta e ordem como prestação de serviços pura e simples exige uma mudança estrutural nas regras do jogo. O que não se pode admitir – e para tanto há necessidade de organização do segmento –  é que se perpetue a adoção de parâmetros duplos, sempre em prejuízo das empresas, e sempre em benefício, quando convém, dos órgãos de arrecadação.

Publicado por:

Kim Augusto Zanoni
OAB/SC 36.370

Sócio gerente do núcleo tributário.

kim@silvaesilva.com.br