30.nov

Estatuto da Criança e do Adolescente – Breve resgate histórico

Meu envolvimento critico relativamente ao chamado Direito do Menor e a “Doutrina da Situação Irregular” começou no Ano Internacional da Criança, 1979, quando da exigência do MEC obrigando a introdução da cadeira de Direito do Menor nos cursos de Direito.

Na mesma época surgia um novo Código de Menores.

Procurado pelo então diretor da Faculdade de Direito de Blumenau, professor Arlindo Bernardt, aceitei o desafio de lecionar o chamado Direito do Menor, basicamente a interpretação e aplicação do novo Código e sua doutrina.

Procedidos aos estudos, fiquei surpreso ao analisar a exposição de motivos e a subjacente doutrina da situação irregular, concluindo que submetidas aos princípios do Direito Ciência aquelas disposições configuravam verdadeira teratologia pelo que assumi posição critica no meio jurídico e universitário.

Participava da Associação Brasileira de Juízes de Menores, cujo presidente, o renomado Juiz Dr. Alyrio Cavallieri, juntamente com juízes de menores das principais capitais ardorosamente defendia o novo código e a doutrina da situação irregular.

Comparecendo aos inúmeros seminários e congressos do chamado Direito do Menor, insistia numa posição critica.

Argumentava que numa exegese histórica, lógica, sociológica, teleológica, qualquer interpretação que se fizesse das novas normas se concluiria da flagrante antijuridicidade.

À época fervilhava movimentação popular e cientifica em torno da Constituinte de 1980.

Com a publicação do novo Código de Menores repetiam-se seminários e debates onde juristas e sociólogos denunciavam que a “doutrina da situação irregular” trazia propostas totalmente colidentes com elementares princípios de direitos humanos.

Uma análise critica do novo código conduzia a conclusão que suas normas se dirigiam a uma categoria de pessoas completamente distintas da criança ou do adolescente:

O menor em situação irregular: Crianças e adolescentes das classes empobrecidas, privadas de direitos fundamentais e sociais eram rotulados como em situação irregular, situação que classificavam como patológica:

Desprotegidos da família, dos bens da vida ou em conflito com a sociedade, crianças e adolescentes eram vistos convivendo numa patologia social. As medidas de proteção como medidas terapêuticas.

Comparava-se a intervenção do juiz de menores a de um médico!

Na realidade menores de dezoito anos não eram considerados sujeitos de direito, mas objetos de proteção; rotulados como vitimas e convivendo em patologia social! Objetos do direito dos adultos ou do Estado sempre que falhavam os responsáveis no cumprimento de seus deveres!

Comparecendo aos inúmeros seminários e congressos do chamado Direito do Menor e de Direitos Humanos frequentes à época decorrência dos movimentos pró-constituinte, insistia numa posição critica.

Argumentava que numa exegese histórica, lógica, sociológica, teleológica, qualquer interpretação que se fizesse das novas normas, se concluiria da flagrante antijuridicidade.

Nos numerosos congressos e debates enfatizava que a nova doutrina trazia propostas totalmente colidentes com elementares princípios do Direito Ciência.

A chamada situação irregular autorizava o Estado a interferir na família com medidas ditas terapêuticas, tudo sem observância de um justo e devido processo legal.

A norma mais importante do Direito do Menor era o subjetivo “superior interesse” capaz de suplantar qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado.  A regra de “ouro” do Direito do Menor que possibilitava as maiores injustiças decorrentes do subjetivismo na interpretação da Lei.

Diante dessa posição critica, comecei a ser convidado pelos grupos sociais que se opunham ao Sistema da Justiça dos Menores até que passei a atuar junto com outros palestrantes, participando dos grupos que se opunham a esse antijurídico sistema.

Defendia posição que tínhamos de submeter o chamado Direito do Menor aos princípios e normas do Direito Ciência afastando o subjetivismo e o autoritarismo para adotar um sistema verdadeiramente cientifico, justo e adequado à realidade social.

Havia já solido movimento popular pela garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes a serem inseridos na Carta Política à época em discussão.

Fervilhavam em todos os ambientes movimentos onde grupos da sociedade civil e de órgãos púbicos discutiam a questão do momento: Direitos Humanos, pincipalmente da criança e do adolescente.

Cresciam os movimentos de defesa dos chamados meninos de rua; surgiam campanhas em defesa dos direitos fundamentais da criança e dos jovens, destacando-se o movimento “Criança e Constituinte”.

Dos inúmeros debates na sociedade, nas universidades, nas igrejas, principalmente em São Paulo, surgia um projeto de normas de proteção da infância e juventude que coincidia basicamente com o texto da proposta que já vinha sendo elaborada por um grupo de juristas, sociólogos, assistentes sociais, médicos, pedagogos. Proposta sintetizada em árduos trabalhos no Ministério Público de São Paulo, liderado pelos ilustres procuradores de justiça Drs. Munir Cury, Paulo Afonso Garrido de Paula e Jurandir Marçura, grupo a que me reuni com apoio do UNICEF.

Importante registrar a valiosa contribuição do UNICEF e dos seus técnicos nas grandes conquistas civilizatórias obtidas com o art. 227 da Carta Política e com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, plenamente justificada pela adoção da Doutrina da Proteção Integral, cujos postulados se encontravam no texto provisório da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

Com o tempo foram se incorporado valorosos especialistas, destacando-se Antônio Carlos Gomes da Costa, Benedito Rodrigues dos Santos, Cesare de Florio La Rocca, Romero Oliveira Andrade, Deodato Rivera, Edson Sêda, Emilio Garcia Mendez, Maria do Rosário Leite Cintra, Mário Volpi, Olympio de Sá Sotto Maior Neto, Sérgio Kukina, Wanderlino Nogueira Neto, Maria Josefina Becker, Luiz Carlos Figueiredo. Grupo progressivamente reforçado por valorosos juristas do Rio Grande do Sul, destacando-se Leoberto Narciso Brancher, João Batista da Costa Saraiva, Vera Lúcia Deboni, Afonso Armando Konzen, Marcel Hope, dentre outros. Especialistas que reunindo extensa fonte oriunda das milhares de contribuições de todo o país, notadamente de pedagogos, assistentes sociais, médicos, advogados, associações de classe, empresários e sindicalistas influenciaram na redação do art. 227 da Carta Política e do Projeto de Lei do Estatuto da Criança e do Adolescente tendo como fonte formal documentos internacionais de direitos humanos, dentre eles o texto provisório da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.

De se destacar a relevante contribuição de valorosos integrantes do Judiciário e do Ministério Público de São Paulo, do Rio Grande do Sul e de Pernambuco com importantes manifestações cientificas notadamente através do aperfeiçoamento na interpretação lógica, sociológica e sistemática das novas normas constitucionais e legais da doutrina da proteção integral, destacando-se Leoberto Narciso Brancher e João Batista da Costa Saraiva ao traçarem bases cientificas de um novo Direito Garantista, Direito Penal Juvenil, posição secundada por Vera Lúcia Deboni, e Marcel Hoppe, fortalecendo a interpretação lógica das novas normas.

Nesses 30 anos de vigência o Estatuto foi aperfeiçoado, mas lamentavelmente a interpretação em muitos casos persiste com base nos vieses da superada doutrina da situação irregular.

Em que pese estudos e criteriosas advertências, principalmente de João Batista da Costa Saraiva e Leoberto Narciso Brancher, persistem oposições ao reconhecimento da existência do um verdadeiro sistema penal juvenil nas normas do Estatuto relativas à prática de atos infracionais, definidos como crimes ou contravenções.

Matéria que precisa ser considerada: O equivoco dos que emocionalmente defendem a ampliação da maioridade penal baseados na interpretação do Estatuto com base nos vieses da ultrapassada doutrina da situação irregular.

É preciso reconhecer que nossas crianças e adolescentes sendo sujeitos de direito necessitam ser educados para a dignidade do exercício da cidadania que impõe direitos e deveres. Vezes sem conta venho repetindo:

Diante da delinquência juvenil, seja nos antigos Códigos da Doutrina da Situação Irregular, seja nas modernas legislações, não se encontrou outra alternativa que referir a condutas tipificadas na lei penal.

A resposta tenha o nome que tiver, medida protetiva, socioeducativa, corresponderá sempre à responsabilização pelo ato antissocial definido como crime ou contravenção penal.

Tais medidas, por serem restritivas de direitos, inclusive da liberdade, consequência da responsabilização, terão sempre visível caráter penal.

Essa característica (penal especial) em antigas ou novas legislações, não pôde ser disfarçada.

Comprovada a prática do ato infracional, a autoridade judiciária poderá impor ao adolescente uma resposta estatal socioeducativa que, além da finalidade pedagógica, objetivará evitar a prática de novos atos infracionais promovendo a readaptação social, visível o caráter também preventivo pela intimidação dirigida à coletividade.

Inegável que a medida socioeducativa cumpre com o mesmo papel da pena criminal, de maneira que, substancialmente inexistem diferenças entre umas e outras.

O Direito Penal Juvenil, cientifico e garantista, tenha o nome que tiver, é um dos ramos da ciência jurídica, do direito positivo!

Acertadamente já se afirmou alhures não ser possível ao legislador pela singela utilização de um nome alterar a substância das coisas transformando a agua em vinho pelo simples fato de que a composição química de ambos é diferente.

Na Alemanha e na Espanha, por exemplo, a responsabilidade penal comum começa mais tarde, existindo para os menores de 18 anos responsabilidade penal juvenil através da Lei Penal Juvenil com medidas muito mais brandas do que as constantes do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A inimputabilidade dos adolescentes do art. 227 da Constituição interpretada literalmente é um mito que contribui para o descredito do Estatuto da Criança e do Adolescente, pelo que imperioso se assuma posição critica admitindo que adolescentes, embora inimputáveis perante o Código Penal, tem responsabilidade juvenil perante o respectivo Estatuto.

Publicado por:

Antonio Fernando do Amaral e Silva

  • Sócio do Escritório Silva & Silva Advogados Associados.